Por Fabiano de Oliveira Moraes em 03/01/2012 na edição 675
Na última semana do ano de 2011, a revista Veja publicou em seu site um conjunto de matérias intitulado “1000 fatos, imagens e ideias que marcaram 2011” e, dentre estes tantos fatos, imagens e ideias “marcantes”, um subgrupo de artigos apresenta por título “Escolas ideológicas”. O tema reúne cinco matérias sobre a presença da ideologia nas universidades brasileiras, em outras palavras, sobre a “ameaçadora” influência de ideologias opostas àquela dominante e hegemônica que há décadas vem sendo defendida, a unhas e dentes, pela própria revista Veja, dentre outros veículos da grande mídia e outros setores conservadores da sociedade. Como se a própria escola burguesa em sua constituição não fosse um aparelho ideológico do Estado, como nos alertou Althusser.
Delineamos abaixo algumas considerações sobre as cinco matérias acerca das “Escolas ideológicas”.
A primeira matéria, intitulada “A ideologização na UnB”, tem por chamada o tema “Madraçal no Planalto”.Vale iniciarmos destacando que o termo “madraçal” deriva de “madraço”: malandro, preguiçoso. O termo, assim como o artigo no todo, subalterniza e desqualifica a administração do reitor da UnB, sobre o qual se afirma haver sido eleito apenas por ter sido possibilitada a atribuição do peso dos votos dos alunos equivalente ao peso dos votos dos professores. Cabe ressaltarmos que as matérias aqui comentadas buscam silenciar ou desmerecer a voz dos alunos (com exceção da voz dos alunos que repetem o ponto de vista da Veja). No entanto, ao lembrarmos que a voz dos estudantes vem sendo há tempos desqualificada e considerada menor, cabe-nos a pergunta: até quando alunos universitários terão peso de voto inferior ao dos professores? Até quando as vozes de pessoas que: exercem direito de voto; elegem presidentes, governadores, deputados, senadores, prefeitos e vereadores; constituem historicamente o segmento que potencialmente imprime mudanças comportamentais na sociedade, e; propõem alternativas ao que se encontra estagnado,serão caladas, silenciadas? Jovens produzem devir e este é o grande risco para quem teme as profundas e urgentes mudanças de que nossa sociedade adoecida tanto necessita.
Bando de baderneiros
Uma das maiores indignações destacadas na matéria tem como razão os protestos e a resistência de estudantes e profissionais da UnB aos discursos reacionários de dois professores que se opõem ao sistema de cotas. E tudo é dito como se a ideologia reacionária contra as cotas e contra os votos dos alunos não tivesse nenhum cunho ideológico; como se a mesma não viesse sendo imposta continuamente e de modo violento sobre os excluídos; como se tal ideologia não calasse as vozes de tantos brasileiros e mesmo como se ela fosse, de fato, democrática. Pois essa ideologia, dominante e hegemônica, quase imperceptível, é considerada “não-ideológica” justamente por não produzir devir (em termos deleuzianos).
A dominação branca, europeia (norte-americana), adulta, elitista e masculina não precisa ser reafirmada. Ela simplesmente existe, precisando apenas calar as outras vozes para manter a sua supremacia. No entanto, quando essas outras vozes, sejam elas os devires de grupos étnico-raciais, de classes sociais desfavorecidas, de segmentos populares e de gênero, proferem sua fala através de protestos ou da defesa de direitos, como por exemplo, através do sistema de cotas, muito embora tais vozes tenham sido caladas por violências das mais diversas no decorrer da história, toda e qualquer discordância para com o discurso dominante é imediatamente considerada uma afronta, uma ameaça à pseudo-democracia excludente defendida por uma corrente ideológica que se autodenomina “não-ideológica”.
Diante de tais fatos, concordamos com o magnífico reitor José Geraldo Sousa Junior: “A Universidade de Brasília nunca foi tão aberta.” Parabéns à UnB por esta conquista.
A segunda matéria sustenta a subalternização e desqualificação do aluno representado, neste texto, pelo movimento estudantil da UNE, apresentando por título “A farra da UNE” e como chamada uma frase extremamente tendenciosa e preconceituosa: “Com a UNE filiada ao governo, eles bebem e você paga”. No artigo, o autor se posiciona contra o apoio governamental à instituição, chegando ao absurdo de insinuar que tal apoio se efetiva na forma da troca de bebidas por uma atitude servil dos estudantes para com o governo. A referência ao importante órgão estudantil se resume à alusão às bebidas e festas e se dá no sentido de desmerecer as lutas e propostas da UNE, calando, dessa maneira, a sua voz e reduzindo os estudantes filiados a um bando de baderneiros diante da opinião pública.
A suposta supremacia
A terceira matéria, intitulada “Coquetéis Molotov na USP” apresenta como linkde chamada a afirmativa: “PM encontra coquetéis molotov na reitoria da USP”. O artigo defende sem rodeios um Estado policial consolidado através de tecnologias biopolíticas de controle da população e de punição contra qualquer tipo de contestação, protesto ou voz que se apresente em desacordo com o discurso hegemônico defendido pela grande mídia e por segmentos reacionários da sociedade. A apresentação da ocupação da reitoria da USP pelos estudantes se resume, na matéria em questão, à desqualificação dos alunos ao descrever dentre os objetos encontrados na ocupação: jogos de carteado e garrafas, vinculando o estudante à malandragem (mais uma vez ao madraçal) assim como ao vandalismo, embora nos depoimentos dos próprios alunos a depredação da reitoria tenha sido promovida na sua ausência, justamente por aqueles que se destinavam a manter a ordem (o que não é considerado como possibilidade na matéria).
Além de calar mais uma vez a voz do segmento jovem da população,a Veja também se omite acerca da recente expulsão de seis alunos da USP por haverem promovido em março de 2010 um protesto através da retomada de um espaço anteriormente destinado à moradia estudantil. A expulsão foi justificada com base em um decreto do regimento da USP de 1972, escrito ainda sob a égide do AI-5. A decisão aponta para um pesado resquício de ditadura, também presente no que subjaz o argumento de defesa da presença de policiamento na Universidade assim como nas frequentes práticas de arapongagem realizadas no campus, como detalha a revista Caros Amigos deste mês.
Sob o título “A ideologia dos super-heróis”, a quarta matéria apresenta a seguinte chamada para o link: “Mistificação e boçalidade: prova de vestibular obriga alunos aresponder que super-heróis escondem supremacia dos brancos”. O artigo questiona a presença de uma imagem de super-heróis norte-americanos na prova do vestibular da Universidade Estadual de Londrina (UEL) enquanto: representantes da ideologia da nação estadunidense em sua autopropaganda de mantenedora da liberdade mundial e símbolos subliminares da crença da supremacia dos brancos, enquanto raça supostamente mais forte e inteligente face aos demais grupos étnicos do planeta.
A matéria mais uma vez nega a presença de uma ideologia no discurso hegemônico, desconsiderando os tantos trabalhos de especialistas que apontam, por exemplo, para a mesma ideologia de supremacia estadunidense representada na perfeição irretocável do camundongo Mickey, na assumida xenofobia do Pica-Pau e no inegável preconceito do Pernalonga. Além, é claro, de personagens como o Capitão América e os tantos heróis dos filmes hollywoodianos, como o soldado Rambo e o lutador Rocky, dentre outros que vêm sustentando a propaganda ideológica que defende uma suposta supremacia norte-americana, masculina e branca.
A palavra e os significados
Mais uma vez o descentramento presente nos devires “não-europeu” e “não-norte-americano” inerentes ao questionamento provocado pela prova de vestibular (e que condiz com conceitos que deveriam ser abordados e debatidos junto aos alunos brasileiros desde a mais tenra idade, sejam eles:o de indústria cultural e o de mecanismo de dominação ideológica) incomoda o que em si é considerado intocável e “não-ideológico”, posto encontrar-se entranhado nas palavras que nos circundam, no mercado que nos rege, nas leis, nos sistemas de pensamento e nas relações que nos constituem,e por esta razão ser equivocadamente considerado por muitos de seus defensores como algo inquestionável porque supostamente imaculado.
Por fim, a última matéria intitulada “A derrota nada elegante da esquerda na UnB” sobressai como uma vitória em relação às matérias anteriores que apresentam ameaças ao status quo, o último artigo é apresentado como uma possibilidade de esperança na juventude para os que tanto se incomodam com as vozes dos segmentos excluídos que, após séculos de silêncio, ousam colocar em xeque o que lhes (nos) vem sendo imposto. A chamada da matéria “Nova chapa do DCE da UnB ouve xingamentos em posse”, reitera, como era de se esperar, o lugar de baderneiros destinado àqueles que questionam o discurso hegemônico, e coloca no lugar de bons moços os representantes da chapa vencedora, uma nova diretoria que, por se declarar apartidária e não-esquerdista, estaria apta a romper com os “preconceitos ideológicos” leia-se: estaria apta a questionar as lutas pelas cotas e pela abertura às vozes não-hegemônicas. Além disso, a diretoria eleita propõe parcerias com empresas privadas, e auto-afirma estar para além dos “rótulos”. No entanto, cabe lembrar que grande parte dos rótulos vem sendo concedidos pelo próprio pensamento hegemônico que, ao demonizar ou subalternizar um grupo, um indivíduo, um saber, uma raça, uma cultura, concede ao termo cunhado, com o intuito de identificá-lo, uma (apenas uma) das muitas valências que este poderia receber, defendendo-a como “a verdadeira e a única valência possível” junto àqueles que cegamente seguem a grande mídia como um fiel ao seu aiatolá (com respeito aos fieis dos aiatolás, sei que poderia ter utilizado com a mesma potência metafórica as figura do pastor ou do padre, quis apenas fazer aludir à canção “Best Seller” de Raul Seixas e Marcelo Nova).
Esquecem-se eles da plurivalência inerente aos signos apontada por Bakhtin. Muitos dos rotulados, no entanto, sabendo que essa atribuição de rótulos é arbitrária, lutam em defesa de novas valências para as suas identidades, para os seus lugares sociais, o que incomoda profundamente os detentores do poder que veem ameaçados seus modos de significar, de atribuir e de constituir discursivamente e de modo monovalente e tendencioso o nosso mundo e as nossas relações.
Cabe-nos prosseguir em defesa de novos usos dessa arena de luta que é o signo, que são as palavras, como afirmou Bakhtin, na luta pelo discurso e através do uso do próprio discurso, como apregoou Foucault. Sigamos, pois, retomando a palavra e os significados que são nossos, pois nos definem e constituem as nossas subjetividades, o nosso mundo.
“Esse silêncio todo me atordoa/ Atordoado eu permaneço atento/ Na arquibancada pra a qualquer momento/ Ver emergir o monstro da lagoa.” (Cálice, Chico Buarque e Gilberto Gil)
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[Fabiano de Oliveira Moraes é escritor e professor, Vitória, ES]
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br. Acesso em 03/01/2012, 10:50
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